domingo, 14 de dezembro de 2008

PROBLEMAS DOS DIREITOS DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS


Prof. Dr. José de Melo Alexandrino * *

(Comunicação apresentada na sessão comemorativa do 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e realizada no Barreiro no dia 10 de Dezembro de 2008)

SUMÁRIO: 1. Ponto de partida e objectivo. 2. Notas extraídas da noção de direitos fundamentais e de direitos do homem. 3. Uma tese sobre a família como objecto de regulação constitucional. 4. Cinco teses sobre a construção jurídica dos direitos das crianças. 5. Regresso ao ponto de partida.

1. Ponto de partida e objectivo

Comecemos por apresentar três casos, cuja análise telegráfica deixaremos naturalmente para o final.

caso 1. – O caso do rapto da recém-nascida
O primeiro caso que pretendo trazer à nossa reflexão foi divulgado inicialmente em Fevereiro de 2006 e é talvez, de todos, o que mais se aproxima da essência do problema dos direitos do homem: uma criança recém-nascida desapareceu, em Fevereiro de 2006, do Hospital Padre Américo, em Penafiel; a família mora numa aldeia do concelho de Lousada; os pais (então com 44 e 41 anos) são caseiros numa propriedade rural há mais de 15 anos e têm sete filhos; desses sete apenas 3 estão com eles: duas filhas (à época, de 3 e 4 anos) foram-lhes retiradas em 2001 por decisão do Tribunal da Lousada (e vivem a umas centenas de metros da casa dos pais), a mais velha vive com os avós e a mais nova acabara de ser raptada
[1].

caso 2. – O caso da seita poligâmica
No final de Março de 2008, na sequência de uma denúncia telefónica e das buscas realizadas pelas autoridades policiais do estado norte-americano do Texas, uma juíza emite uma ordem judicial de retirada de 416 crianças (ordenando ainda a realização de testes de ADN a todas elas, por forma a determinar os respectivos pais biológicos) de um Rancho (YFZ – Yearning For Zion) ligado a uma seita mórmon (Fundamentalist Church of Jesus Christ of Latter-day Saints); em 4 de Junho de 2008, depois da decisão da última instância, todas as crianças tinham sido devolvidas ao Rancho YFZ
[2].

caso 3. – O caso da recusa de transplante
Um terceiro caso foi trazido a público em Novembro de 2008
[3]: uma jovem britânica de 13 anos, Hannah Jones, sofrendo de uma rara forma de leucemia, parece ter conseguido impor ao tribunal e à Comissão de Protecção de Menores competente a decisão de recusar um transplante cardíaco que lhe prolongaria a vida, preferindo “morrer com dignidade” em casa, rodeada pela família[4].

Constitui objectivo desta nossa reflexão tentar encontrar linhas de resposta às seguintes interrogações: 1.ª) terá a família algo a lucrar com o facto de ser directamente protegida pelas normas constitucionais? 2.ª) Ainda que as crianças se mostrem particularmente carecidas de protecção, deverá essa protecção ser feita preferencialmente sob a forma da atribuição de direitos (sejam eles direitos humanos, direitos fundamentais ou outros)? 3.ª) A garantia dos direitos das crianças não dependerá sobretudo da análise cuidada dos problemas
[5] e de modo muito especial do bom funcionamento dos mecanismos do Estado de Direito democrático[6]?

2. Notas extraídas da noção de direitos fundamentais e de direitos do homem

Antes de avançar com uma noção elementar de direitos fundamentais, três ideias a reter são estas: (1.ª) os direitos fundamentais visam proteger bens e interesses básicos das pessoas (relativos às esferas da existência, da autonomia e do poder, em função da experiência de situações históricas de perigo); (2.ª) os direitos fundamentais protegem as pessoas, antes de mais, na sua relação com o Estado (ou os poderes públicos em geral)
[7]; (3.ª) normalmente, essa protecção traduz-se no impedimento de ingerências do Estado, mas não está excluído que essa protecção se possa também traduzir em outros vínculos, designadamente em deveres de protecção e em acções positivas do Estado[8].

2.1. Um direito fundamental pode pois definir-se como uma situação jurídica das pessoas perante os poderes públicos consagrada na Constituição
[9]. E essas situações jurídicas são revestidas de certas características, na medida em que os direitos fundamentais são necessariamente situações jurídicas fundamentais, universais, permanentes, pessoais, não-patrimoniais e indisponíveis[10].
Ora, diversas são as consequências imediatamente derivadas do facto de os direitos fundamentais serem situações jurídicas positivadas na Constituição (da positividade dos direitos fundamentais): (i) em primeiro lugar, os direitos deixam de ser meras proclamações morais ou políticas, para se converterem em realidades jurídicas; (ii) em segundo lugar, colocados nesse patamar superior, os direitos fundamentais apresentam-se agora como garantias jurídicas contra o legislador (são trunfos contra ele)
[11]; (iii) os direitos fundamentais vinculam directamente todos os poderes públicos, constituindo parâmetro material das decisões dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais; (iv) por tudo isso, os direitos fundamentais passam, automaticamente, a dispor de um conjunto de mecanismos de tutela[12].
Numa primeira aproximação, as crianças têm plena titularidade, e em princípio também capacidade
[13], de direitos fundamentais; já quanto às famílias, não se pode dizer normal a titularidade de direitos fundamentais pela família (seja do ponto de vista lógico, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista axiológico) e é duvidoso que seja conveniente (v. infra, n.º 3).

2.2. Por seu lado, direitos do homem são as situações jurídicas que, valendo para todos os povos e sendo comuns a todos os homens, resultam da natureza ou da condição do homem e que o Direito internacional reconhece
[14] (sobretudo a partir do marco constituído pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948).
Os direitos do homem não se diferenciam dos direitos fundamentais (1.º) nem pelo exclusivo da referência a valores éticos superiores (uma vez que, por regra, também os direitos fundamentais estão, e em termos variáveis como aqueles, referidos a esses valores), (2.º) nem pela fundamentalidade (que também neles pode apresentar distintos graus), (3.º) nem pela finalidade (ambos visam defender e promover a dignidade, a autonomia e o poder das pessoas concretas)
[15].
Como tenho defendido
[16], o que distingue uns e outros são antes os traços seguintes: (i) os direitos do homem podem ser direitos puramente morais, ao passo que os direitos fundamentais são sempre direitos jurídicos; (ii) os direitos do homem não estão necessariamente positivados, ao passo que os direitos fundamentais são direitos previstos na Constituição (podendo estes conceber-se ainda como resultado do processo jurídico de institucionalização daqueles); (iii) os direitos do homem apresentam uma pretensão de vinculatividade universal (eles podem obrigar todos os sujeitos, públicos e privados, todos os ordenamentos e em todos os tempos), ao passo que os direitos fundamentais vinculam sobretudo o Estado (os poderes públicos), no âmbito de uma ordem jurídica concreta, situada no espaço e no tempo; (iv) os direitos do homem são, em regra, direitos abstractos, ao passo que os direitos fundamentais incorporam tradicionalmente garantias jurídicas concretas e delimitadas (fenómeno particularmente visível no constitucionalismo português), imediatamente accionáveis pelos interessados; (v) nada impede, por último, que os direitos do homem possam, em certos casos e para certos efeitos, ser concebidos como fins ou como programas morais de reforma ou de acção política (daí precisamente a emergência do processo da sua internacionalização, na segunda metade do século XX), ao passo que os direitos fundamentais postulam sempre de determinados mecanismos de garantia jurisdicional[17].

2.3. Ora, se nada obsta a que os direitos do homem sejam concebidos como valores – foi nessa veste que aliás permaneceram até à emergência da Declaração Universal dos Direitos do Homem e é apenas nessas vestes que em boa medida valem em muitos países –, o mesmo não pode ser afirmado dos direitos fundamentais, pois estes não são nem podem, em geral, ser tomados como valores, por quatro razões fundamentais.
Em primeiro lugar, porque não foi esse o sentido da evolução histórica que conduziu à positivação dos direitos fundamentais – o processo foi o inverso: da validade moral, para a validade jurídica; em segundo lugar, porque a isso também se opõe o princípio da separação de poderes (dimensão nuclear do Estado de Direito); em terceiro lugar, na referência a valores, o que é positivado é o vínculo
[18], havendo então a esclarecer qual a função que pertence ao valor; por fim, os direitos fundamentais, na Constituição, são o oposto do valor: são barreiras (ou seja, garantias jurídicas concretas e especificadas) contra um discurso centrado em valores[19].
Daqui resulta uma tripla constatação: em Estado constitucional, salvo desvios grosseiros (como talvez parece suceder no caso 1), não é aos direitos humanos das crianças que os aplicadores jurídicos se devem normalmente referir, mas sim aos direitos fundamentais das crianças (e à concretização que a essa tutela tenha sido dada pelo ordenamento infra-constitucional); a segunda constatação é a de que a nossa atenção nunca pode deixar de ser dirigida ao funcionamento dos mecanismos do Estado de Direito
[20]; a terceira é a de que as normas de direitos humanos da criança têm sobretudo uma função de orientação (uma aplicação e um óbvio paralelo do artigo 16.º, n.º 2, da Constituição[21]).

3. Uma tese sobre a família como objecto de regulação constitucional

Afirmei recentemente a minha adesão às seguintes três ideias centrais: «[a] de que são funções da família (entendida esta com “um sistema nuclear relativamente autónomo baseado na íntima afeição pessoal”) a consolidação na criança de uma personalidade capaz de socializar e a serenidade dos componentes da família, obtida inteiramente no círculo familiar; (2.ª) consequentemente, a de que os bens e interesses que concernem à família (intimidade, segurança, autonomia, afectos, etc.) devem, prima facie, ser protegidos da intromissão de terceiros, a começar pelo Estado; (3.ª) finalmente a de que valem por isso inteiramente aqui as ideias básicas de liberdade, mas também de subsidiariedade (ou seja, de que deve estar vedado à esfera dos poderes públicos aquilo que é mais adequadamente prosseguido pelos indivíduos, pela família e pelos grupos sociais)»
[22].
Para poupar no nosso tempo, pretendo dizer com isto: (i) que a família
[23] é uma esfera própria, um reduto fundamental (de realização de interesses existenciais básicos do ser humano e da afirmação e construção dos valores) a preservar na medida do possível da intromissão do Estado – mesmo quando essa intromissão se faça através da concessão de direitos, que podem ser políticos (como na Constituição de 1933), sociais (como na Constituição de 1976) ou puramente prestacionais[24]; (ii) que toda a intervenção pública na família, a menos que seja postulada pelas exigências inafastáveis do Direito (em especial para a defesa dos bens e interesses primários de algum dos respectivos membros), é em princípio de natureza autoritária; (iii) que a família, por ser o grupo natural mais próximo da pessoa individualmente considerada, constitui um núcleo social mais do que protegida pela liberdade de associação – está protegido pelo feixe de direitos e pretensões de cada um dos membros que o constituem e pelos efeitos de protecção que decorrem do toda a estrutura do Estado de Direito, necessariamente ao serviço dessa esfera do mundo da vida.
Nesse sentido, normas ou dimensões normativas como as que decorrem do preceituado nos artigos 1676.º, n.º 2, ou 1906.º, n.º 1, do Código Civil ou do artigo 250.º, n.º 1, do Código Penal, a menos que aplicadas e interpretadas em conformidade com a Constituição, representam exemplos de intromissões autoritárias, e aliás disfuncionais
[25], no seio da estrutura familiar[26].
Na verdade, a questão constitucional da família reside sim na necessidade de ela ser protegida face à politização, devendo obstar-se a que a mesma se transforme, como transformou entre nós e um pouco por toda a Europa continental, num ponto do programa político dos partidos (Niklas Luhmann)
[27].

4. Cinco teses sobre a construção jurídica dos direitos das crianças

Num dia como o de hoje, penso que se justifica retomar aqui, deixando agora de lado dimensões dogmáticas mais austeras da construção dos direitos das crianças
[28], algumas das principais linhas de pensamento expendidas numa reflexão recentemente feita sobre os direitos das crianças, onde comecei por lembrar a juventude da ideia de as crianças serem titulares de direitos.

4.1. Partindo da observação de múltiplos domínios do Direito objectivo (ou seja, do facto de, em centenas de disposições e em mais de três dezenas de mecanismos de protecção referidos às crianças, a protecção através da atribuição de direitos acontecer em menos de 20% dos casos), uma primeira tese aí defendida foi a de que a protecção das crianças através de direitos tem um carácter excepcional, constituindo regra geral a protecção feita através dos pais ou através da imposição de deveres, da criação de serviços e da instituição de mecanismos vários de organização e procedimento
[29].

4.2. Uma segunda tese partiu da observação (executada em diversos planos) do quadro de direitos da criança previsto na Lei Tutelar Educativa
[30], modelo que, uma vez articulado com as demais esferas dos direitos das crianças, permitiu traçar as seguintes seis linhas orientadoras:

a) A regra geral básica de partida é a de que o menor é titular de todos os direitos (salvo aqueles cuja fruição ou exercício seja comprovadamente incompatível com a sua situação);
(b) Constituem, em segundo lugar, bens e interesses prioritários da criança a vida, a sobrevivência, a integridade (física e psíquica) e a liberdade (tanto no sentido do desenvolvimento da personalidade, como no da liberdade física e da liberdade ideológica);
(c) Em terceiro lugar, embora a criança goze, em princípio, de todos os direitos de todas as esferas
[31], pela natureza das coisas, os seus direitos estão directamente limitados[32] pelo complexo de direitos, deveres, poderes e interesses inerentes à responsabilidade parental ou, em alternativa, pelos poderes funcionais atribuídos pelo ordenamento às pessoas, serviços ou instituições a que a criança tenha de ser confiada (significando esses limites directos uma correspondente redução dos efeitos de protecção das normas de direitos da criança);
(d) Em quarto lugar, deve entender-se que, na esfera da família
[33], cabe primariamente aos pais a protecção dos direitos da criança, ao passo que, fora da família, cabe primariamente ao Estado o mandato de promover a protecção especial da criança;
(e) Em quinto lugar, não deve caber dúvida de que as crianças são titulares de direitos fundamentais (contra o Estado e as demais entidades públicas), do mesmo modo que são titulares dos direitos de personalidade (contra outros sujeitos privados) e de direitos humanos (contra a generalidade dos sujeitos públicos e privados, no plano interno e no plano internacional);
(f) Por último, fora dos casos excepcionais de privação da liberdade ou dos direitos cujo exercício requeira a maioridade, a medida do exercício de direitos fundamentais por menores apenas pode ser afectada (1) quando, em abstracto, essa afectação possa ser compreendida e justificada à luz de estritas exigências derivadas da respectiva capacidade natural ou dos poderes de conformação das leis gerais ou ainda (2) quando, em abstracto ou em concreto, essa afectação possa ser compreendida e justificada no âmbito do exercício legítimo do poder paternal (ou da autoridade institucional substitutiva)
[34].

4.3. Numa terceira tese, foi assinalada a marcada heterogeneidade dos direitos das crianças, quer sob o prisma da origem dos enunciados (que podem estar previstos em ‘fontes’ internacionais ou internas e, neste segundo caso, na Constituição, na lei ordinária ou em enunciados infra-legais)
[35], quer sob o prisma da natureza dos direitos (que, em múltiplos casos, não ultrapassam a esfera da protecção de interesses, noutros constituem mandatos de protecção de natureza híbrida e raramente constituem direitos subjectivos)[36], quer sob o prisma do carácter dos direitos (havendo proclamações morais de direitos, direitos do homem, direitos fundamentais, direitos legais, direitos infra-legais), quer quanto à estrutura desses direitos, quer quanto ao respectivo regime (sendo mais forte o regime aplicável aos direitos subjectivos previstos na Constituição, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na lei e mais débil o aplicável à generalidade dos direitos do homem e aos direitos fundamentais sociais)[37].

4.4. Uma quarta ideia assinala a presença de pelo menos três grandes entidades em cada uma das distintas esferas do Direito dos direitos das crianças: a dignidade da pessoa humana, a autonomia e o desenvolvimento da personalidade. Na impossibilidade de aqui desenvolver a ideia, permitam-me apenas dizer – o que aliás faço pela primeira vez – que, tal como a entendo, a dignidade da pessoa humana está para a comunidade nacional como a Declaração Universal dos Direitos do Homem
[38] está para a Humanidade: cada uma na sua esfera, ambas constituem a referência última da representação do eminente valor do ser humano[39].

4.5. Finalmente, uma tese sobre o aparentemente tormentoso princípio do “interesse superior da criança”. Nessa matéria, depois de ter reconhecido que o ordenamento português o configura adequadamente (essencialmente nas vestes de critério orientador na resolução de casos concretos)
[40] e de ter procurado esclarecer o que o “interesse superior da criança” não é (não é um direito fundamental, não é um direito do homem, não é um bem fundamental, não é um interesse público, não é uma condição do exercício do poder paternal ou tão-pouco uma realidade equivalente a “interesses da criança”), concluí da seguinte maneira: «[o interesse superior da criança é,] em primeiro lugar, uma norma de competência (ou seja, uma norma que estabelece uma habilitação para criar normas ou decisões), ora a favor do legislador (na configuração a dar ao ordenamento), ora a favor do juiz e da administração tutelar (na construção das normas de decisão dos casos concretos); em segundo lugar, uma norma impositiva, que ordena ao juiz e à administração (e até aos pais) que, na tomada de uma decisão que respeite ao menor, não deixem nunca de recorrer (mas sempre dentro dos limites do Direito aplicável e das circunstâncias do caso) à ponderação do(s) interesse(s) superior(es) do menor – ou seja, do(s) interesse(s) conexo(s) com os bens prioritários da criança (a vida, a integridade, a liberdade), no contexto dos bens e interesses relevantes no caso. Ainda assim, apenas como um critério suplementar a atender na construção da norma de decisão»[41].

5. Regresso ao ponto de partida

Em jeito de conclusão final, voltemos aos nossos casos iniciais.

Caso 1
No caso da família da Lousada, quase tudo nos interpela: a pobreza insuportável da família numerosa, onde apesar de tudo ambos os progenitores trabalham; as crianças retiradas aos três e quatro anos de idade, contra a vontade dos pais, dos irmãos e certamente das próprias crianças; a falta de condições de saúde e de habitabilidade em que todos viviam; não ter sido garantido a esta família, justamente a ela, que mais um filho não lhe fosse retirado violentamente; ter sido imposta a esta família uma espécie de regime de apresentação periódica (no caso, das técnicas da câmara municipal que compareciam semanalmente no espaço do lar); de nunca, que se saiba, ter sido gizada pelas instituições do Estado uma solução que permitisse uma protecção global e mais efectiva dos interesses verdadeiramente fundamentais de todas aquelas 9 pessoas – poderia aí justamente perguntar-se pelo cumprimento dado a múltiplas disposições da Convenção dos Direitos das Crianças
[42].

Caso 2
No caso da seita poligâmica, como exemplo e como lição quanto a todos os aspectos que pretendi salientar (até pelo fácil confronto com outros casos, não menos conhecidos), basta-me referir a sequência do caso, desde o momento em que surgiu a denúncia anónima (29 de Março de 2008), até ao seu encerramento:

– Levada a denúncia ao conhecimento do tribunal (no dia seguinte, 30 de Março de 2008), as autoridades de polícia promovem uma série de buscas no Rancho YFZ;
– Em 6 de Abril, 60 membros da comunidade mórmon imploram, de joelhos, às autoridades que não entrem no interior do templo;
– Em 7 de Abril de 2008, é preso o líder da Seita;
– Em 9 de Abril de 2008, os advogados da Seita, mas também diversas organizações de direitos e liberdades, invocam a violação da liberdade religiosa e do direito à privacidade;
– Em 18 de Abril de 2008, depois de dois dias de audições, a juíza Barbara Walther ordena que as 416 crianças já retiradas do Rancho YFZ fiquem sob a custódia do estado do Texas e sejam submetidas a testes de ADN;
– Em 22 de Maio de 2008, o Texas Appeals Court revoga a decisão da 1.ª instância, decidindo que o estado não deveria ter retirado as crianças, dado não se ter provado que estivessem sob “perigo iminente”, dando 10 dias ao tribunal recorrido para reformar a decisão de colocar as crianças sob custódia do estado;
– Em 25 de Maio de 2008, o Supremo Tribunal do Texas (por seis votos contra três) confirmou a decisão da 2.ª instância, tentando ainda indicar alguns critérios sobre a forma como as crianças deveriam ser devolvidas às respectivas famílias;
– Em 2 de Junho de 2006, a juíza Barbara Walther ordena ao Departamento da Família e Serviços de Protecção que permita aos pais virem buscar as crianças, processo que fica concluído no dia 4 de Junho de 2008;
– Apenas se acrescenta que, na data em que as crianças foram efectivamente retiradas, 133 mulheres deixaram voluntariamente as instalações do Rancho YFZ, juntando-se às crianças numa casa de acolhimento em San Angelo; as crianças foram também distribuídas por uma série de quintas e outros espaços, seguindo requisitos especiais de estadia e acompanhamento (na sequência dos pareceres e indicações prestados nomeadamente por psiquiatras e por estudiosos da organização religiosa em causa).

Caso 3
O caso da recusa do transplante pela jovem Hannah Jones é particularmente exemplar para aferir o sentido do critério do interesse superior da criança, nomeadamente pelo facto de estarem aí envolvidos bens e interesses tão essenciais como a liberdade individual, a vida, a dignidade, a saúde ou o de não se ser submetido a tratamentos médicos ou o de morrer com dignidade.
Sem com isso pretender naturalmente encerrar o horizonte do problema, três ideias me parecem claras: 1.º) a imposição do transplante, contra a vontade e a forma como a criança entende a sua dignidade, traduziria, ela sim, uma ofensa insustentável à sua liberdade e autonomia (já para não referir à própria integridade física); 2.º) no plano dos direitos básicos da pessoa (que é, como defendemos, o plano do interesse superior da criança), o caso parece apontar para o carácter absolutamente primário da liberdade; 3.º) é relativamente evidente o lugar periférico da protecção da saúde, de onde parece resultar que nunca os interesses da saúde, nem neste caso nem à partida, poderiam ser tidos como parâmetro decisivo
[43].
* Paper provisório da palestra proferida, em 10 de Dezembro de 2008, na Conferência (organizada pelo Tribunal de Família e Menores do Barreiro e pela Delegação da Ordem dos Advogados do Barreiro) comemorativa do 60.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.


** Professor da Faculdade de Direito de Lisboa.

[1] Jornal Público, «Destaque» [reportagem de Nuno Amaral], de 21 de Fevereiro de 2006, p. 3.
A criança veio a ser encontrada em Março de 2007, tendo sido posteriormente devolvida aos pais (Semanário Sol, de 19 de Maio de 2007, p. 26)
[2] Com indicações, http://wwwwakeupamericans-spree.blogspot.com/2008/04/judge-orders-flds-children-to-stay-in.html (08.12.2008).
[3] Caso trazido a público (http://www.news.com.au/dailytelegraph/story/0,22049,24639223-5006003,00.html), entre outros, pelo The Daily Telegraph.
[4] Sofia Cerqueira, in Público, de 12 de Novembro de 2008, p. 17.
[5] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte geral, tomo III – Pessoas, exercício jurídico, 2.ª pré-edição, Coimbra, 2002, p. 27.
[6] Sobre o sentido e âmbito do princípio, Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 32 ss., 43 ss.; Maria Lúcia Amaral, A Forma da República – Uma introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra, 2005, p. 139 ss.; José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. II – A construção dogmática, Coimbra, 2006, p. 282 ss.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 4.ª ed., Coimbra, 2008, p. 226 ss.
[7] Com renovado acento, J. Miranda, Manual..., IV, p. 302.
[8] José de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais – Introdução geral, Estoril, 2007, p. 21.
[9] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 22.
[10] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 22 s.
[11] Por todos, Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais – Trunfos contra a maioria, Coimbra, 2006.
[12] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 20, nota.
[13] Por último, com interesse, Rosa Martins, Menoridade, (In)capacidade e Cuidado Parental, Coimbra, 2008, p. 45 ss., 56 ss., 109 ss.
[14] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 33
[15] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 34.
[16] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 34 s.
[17] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 36.
[18] Por último, José de Melo Alexandrino, «Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir da variedade de concepções», in AAVV, Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra, 2008, p. 507 [481-511].
[19] Sobre algumas dessas implicações, Walter Leisner, Der Abwägunsstaat – Verhältnismäβigkeit als Gerechtigkeit?, Berlin, 1997, p. 170 ss., 225 ss., 232 ss.
[20] Sobre a necessidade desta articulação entre o Estado de direitos fundamentais e o Estado de direitos humanos, Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, Coimbra, 2007, p. 541.
[21] Sobre a função desta cláusula, nos planos doutrinário e jurisprudencial, por último, M. Alexandrino, A estruturação do sistema..., II, p. 328 ss., 572 s.; id., Direitos Fundamentais..., p. 56 ss.
[22] José de Melo Alexandrino, «Os direitos das crianças: linhas para uma construção unitária», in ROA, ano 68 (2008), I, p. 280 [275-309].
[23] Naturalmente, a família é hoje um conceito juridicamente aberto, logo a partir do quadro constitucional (ainda hesitante, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, Lisboa, 2008, p. 100 s.; mais decididos, J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa – Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 561, 856 s.).
[24] Como pode ser dado o exemplo da interferência associada à entrega generalizada de computadores às crianças de apenas 6 ou 7 anos de idade, na escola pública.
[25] Temos nessa medida por justificados dois dos principais argumentos expressos pelo Presidente da República no veto ao decreto n.º 232/X da Assembleia da República e na mensagem que acompanhou a promulgação da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro [para consulta do teor dessas duas mensagens, http://www.presidencia.pt/?idc=10&idi=19017 e http://www.presidencia.pt/?idc=10&idi=21401 (08.12.2008)].
Em concreto, sobre a inviabilidade da solução da guarda conjunta agora consagrada no artigo 1906.º, n.º 1, do Código Civil, cfr. Carlos Pamplona Corte-Real / José Silva Pereira, Direito da Família – Tópicos para uma reflexão crítica, Lisboa, 2008, p. 103 s.
[26] Tome-se na devida conta o número de vezes que, por dia, por semana ou por mês, os principais líderes políticos portugueses, a começar naturalmente pelos do partido governamental, invocam a defesa da família para justificar as mais variadas decisões ou estratégias de acção – trata-se de simples e ilegítima instrumentalização da família (cfr. Niklas Luhmann, Grundrechte als Institution – Ein Beitrag zur politischen Soziologie, 4.ª ed., Berlin, 1999, p. 105).
[27] N. Luhmann, Grundrechte als Institution..., p. 106.
[28] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 300-306.
[29] Exemplo máximo é constituído pela Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro), que, em 261 preceitos, apenas em cinco deles enuncia direitos.
[30] Aprovada pela Lei n.º 169/99, de 14 de Setembro.
[31] Um catálogo de direitos especialmente relevantes seria constituído, entre outros, pelo direito ao mínimo de bem-estar, o direito a ser amado, o direito ao desenvolvimento da personalidade, o direito a ser ouvido (apontando, moralmente, neste sentido, David William Archard, Children, Family and The State, Aldershot, 2003, p. 29 s., 30, 31 ss., 38).
[32] Sobre o conceito de limite directo, M. Alexandrino, A estruturação do sistema..., II, p. 468 ss.; id., Direitos Fundamentais..., p. 113.
[33] Entendida como a família-que-existe (e não a família-que-não-existe), no pressuposto de que se trate de família viável (ou seja, que pode cumprir a sua função essencial).
[34] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 288-290 (notas omitidas).
[35] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 293.
[36] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 293 s.
[37] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 294.
[38] M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 9 ss., 34 ss.
[39] Por último, com amplas indicações, M. Alexandrino, «Perfil constitucional da dignidade...», p. 506 ss.
[40] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 307.
[41] M. Alexandrino, «Os direitos das crianças...», p. 309.
[42] Designadamente, os seus artigos 6.º, n.º 2, 8.º, n.º 1, 9.º, n.º 1, 10.º, 16.º, 19.º, n.º 2, 24.º, n.º 1, ou 27.º, n.º 1.
[43] Censurando justamente a indevida sobreposição de planos entre a integridade física e a saúde, vejam-se as declarações de voto das Conselheiras Maria Lúcia Amaral e Maria João Antunes, no recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 423/2008 (in Diário da República, 1.ª série, de 17 de Setembro de 2008, p. 6745-6760).

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