sábado, 21 de março de 2009

SERVIÇOS DA JUSTIÇA vs "CARTA DE QUALIDADE DOS JUÍZES" - NOVO "CAVALO DE TRÓIA" PARA A FUNCIONALIZAÇÃO


Fui ontem surpreendido por uma notícia divulgada no Portal do Cidadão com o seguinte conteúdo: -
“Sines vai contar com o primeiro juízo social do país que, no âmbito do novo Mapa Judiciário, será integrado na futura comarca experimental do Alentejo Litoral e reunirá serviços da Justiça na área da Família, Menores e Trabalho.”
Recordo que, no âmbito da nova organização judiciária, será instalado no concelho de Sines um Juízo Misto de Trabalho e de Família e Menores, solução que já tivemos oportunidade de comentar neste espaço.


Contudo, a questão que esta notícia do Portal do Cidadão suscita prende-se na parte do texto que evidenciámos propositadamente: - os tais “serviços da Justiça na área da Família, Menores e Trabalho”.

Com efeito, no quadro constitucional português, os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigos 110.º, n.º 1 e 202.º, n.º 1 da Constituição).

Segundo a doutrina constitucional, os órgãos de soberania são aqueles que se ligam, necessária e primeiramente, à soberania como poder próprio e originário do Estado.
Cada tribunal consubstancia um órgão de soberania aos quais incumbe a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, a repressão da violação da legalidade democrática e a dirimição dos conflitos de interesses públicos e privados.

São independentes e apenas estão sujeitos à lei estabelecendo-se ainda a separação e a interdependência dos órgãos de soberania (artigos 11.º, n.º 1 e 203.º da Constituição).

O conceito de “serviço de justiça” não é alheio a “uma concepção economicista e tecnocrata duma Justiça consentânea com o discurso do Estado neo-liberal e da sociedade globalizada, preconizando-se os Tribunais como categorias empresariais, funcionalizados e dependentes, cujas decisões devem conter um mínimo de oscilação jurisprudencial” (Orlando Afonso, Da Independência da Magistratura).

Como o mesmo afirma, a esta concepção não é alheio o poder político, uma franja da advocacia e alguns sectores pseudo-modernos da magistratura.

Contudo, nós defendemos uma visão da Justiça como valor civilizacional e virtude primeira das instituições sociais, pilar de um Estado de Direito democrático.
Esta concepção não se compadece com índices de produtividade, com regras matemáticas de apreciação do facto jurídico e muito menos com decisões a contento ou por medida.

Esta concepção tem como fundamento a existência de tribunais independentes e eficazes mas repudiando reformas que, directa ou indirectamente, abalem os princípios estruturantes do poder judicial: - a independência, a inamovibilidade, o princípio do juiz natural e outras).

Como afirma Rawls, “cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da Justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade, como um todo, poderá ser eliminada (…) pois a perda da liberdade para alguns não pode ser justificad pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior ou não podendo permitir que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número”.

A Justiça é um valor do Homem e para o Homem e, na tradição constitucional portuguesa, é realizada pelos órgãos de soberania a quem incumbe administrar a Justiça em nome do Povo: - os Tribunais.

O conceito de “serviço de justiça” implica que se perca a real dimensão do Direito da Justiça, defendido por alguns por via de reformas judiciárias em nome da produtividade, do maior lucro ou das menores perdas.
Se a Justiça fosse um serviço, o que se pretende é uma justiça “eficiente”, previsível e ao menor custo, pouco importando que se faça justiça, contanto que se resolvam casos e se diminuam pendências.

Porém, uma justiça matemática ou de escopo económico pode corresponder aos mais elevados parâmetros de gestão empresarial mas, seguramente, não é Justiça pois a maior das qualidades da Justiça é ser, de acordo com a Lei e o Direito, justa.

Não é possível exercer um poder soberano do Estado e, ao mesmo tempo, pugnar pelo conceito de serviço pois este pressupõe uma permanente avaliação da qualidade, na óptica do cidadão-cliente, sendo obrigatório e conveniente que, para a concretização desse objectivo, após cada atendimento, o cidadão deixe a sua avaliação e esta tenha consequências.

Contudo, não entendemos possível defender que o juiz, após condenar um cidadão a uma pena de prisão ou decidir pela retirada de um filho para adopção, pergunte a esse mesmo cidadão se ficou satisfeito com o serviço que lhe foi prestado pois a resposta seria manifestamente evidente.

Isso não significa que a actividade jurisdicional não deva observar determinados princípios face ao cidadão que se dirigiu ao Tribunal e a quem foi aplicada uma pena privativa da liberdade ou decidida uma medida que lhe retira definitivamente os laços parentais, designadamente os princípios do humanismo, da urbanidade e da imparcialidade.
Mas também é necessário que essa actividade jurisdicional seja independente e, sobretudo, seja exercida sem receios ou constrangimentos.

Esses princípios são inerentes à própria função de Juiz e encontram expressão no conjunto de regras éticas que o mesmo deve respeitar no exercício dessa função.

Não precisam de estar plasmadas em qualquer cartaz que se pretende expor em local visível nas áreas públicas de um qualquer Tribunal contribuindo para a aparência do tal “serviço de justiça” que repudiamos.

Este conceito de “serviços de justiça” divulgado por uma entidade do poder executivo, misturado com a imagem de um compromisso ético que parece afirmar aos cidadãos que antes não havia ética entre os juízes, é mais um “Cavalo de Tróia” para a funcionalização e deslegitimação dos juízes.

E é sobretudo mais constrangedor quando surge dentro das muralhas do Estado de Direito democrático que deveria exigir e pugnar por um Poder Judicial soberano e independente.

António José Fialho
Juiz de Direito
Tribunal de Família e Menores do Barreiro

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