terça-feira, 27 de janeiro de 2009

DISCURSO DO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA ABERTURA DO ANO JUDICIAL


Entramos em 2009 sob o signo de uma crise financeira aguda, não tão imprevisível quanto isso, e a que se está seguindo a recessão económica esperada.
Crise emergente de produtos financeiros estruturados, embalados e reembalados quase indefinidamente que, anos a fio, especularam as nossas sociedades muito acima dos patamares de riqueza produzida.
Ela era a prova visível que faltava para pôr a nu diante dos olhos de quem duvidava, a causa principal e primeira do bloqueio e da morosidade dos nossos tribunais.
Há doze anos, no seu célebre estudo, Boaventura de Sousa Santos concluía que o Judiciário português estava colonizado pelos grandes utentes usurários que capturavam o sistema, banalizando-o com lixo processual.
Desde 1999, a partir do 2º congresso de Direito do Consumo, que teve lugar na Maia, fui defendendo sucessiva e afincadamente que os tribunais do nosso país só se reequilibrariam quando se alterasse todo o regime de concessão de crédito ao consumo que endividava alargadamente, e cada vez mais, núcleos familiares inteiros sustentado por uma publicidade escandalosamente agressiva ou enganosa.
Os números das estatísticas oficiais de mais de uma década não enganavam: enquanto a subida de distribuição anual de processos criminais, de família, de menores, de trabalho era linear, regular e sustentada, a das acções cíveis de dívida sofria um aumento brutal e permanecia, depois, em números elevadamente inadmissíveis que conduziram os tribunais de 1ª instância a um bloqueio incontrolável.Ainda hoje pagamos o preço desse desvario expresso na enxurrada da pequena litigância cível e na acção executiva que representará seguramente 60% das pendências actuais dos tribunais portugueses; se esse desvario não tivesse ocorrido, a 1ª instância não teria os timings curtos de julgamento dos tribunais superiores mas teria, de certeza, uma fluidez e rapidez muito superiores às actuais.
Mas desse tempo, ficou-nos ainda uma outra imagem de marca que, com a crise actual, se vai desvanecendo: a de que a ineficácia dos tribunais era a causa primordial da ineficiência da economia.
Ideia distorcida, porque se a eficácia judiciária é um dos vários factores da produtividade económica, não é nem o primeiro nem o principal e que os próprios relatórios do Conselho de Europa se encarregaram de desmentir ao fornecer exemplos de países (a Itália é o caso mais paradigmático) bem mais ricos que nós e cujos tribunais funcionam pior que os nossos.
O que estava por detrás da linguagem oculta de um discurso assim era a mensagem subliminar de responsabilização de quem se dizia nada trabalhar ou pouco julgar, afectando pretensamente a economia global e o bem-estar nacional.
A crise entretanto surgida fez implodir todos estes cenários, recolocando as coisas no seu devido lugar, e trazendo para a ribalta preocupações novas e diferentes sobre as quais os juristas e o mundo do direito têm o dever de se debruçar.
Harvard talvez nos dê o azimute.
Em Harvard - segundo informa o catedrático da Faculdade de Economia do Porto, Prof. Elísio Brandão - foi publicado um estudo de onde se infere que a causa maior da crise que vivemos reside no facto de os produtos financeiros serem estruturados e implementados pelas mesmas empresas encarregadas, a seguir, de os auditar e certificar.
Nesse estudo identificam-se dez multinacionais que fazem a obra que, depois, vão fiscalizar; e, à partida, percebe-se bem por que motivo quem audita nunca deverá ser quem fez, sob pena de os vícios redibitórios da obra ficarem para sempre sepultados em catacumbas invisíveis.
Do estudo de Harvard podemos extrapolar, para o mundo do Direito, três princípios inalienáveis.
O primeiro mostra-nos a falência dos sistemas de auto-regulação que conduzem sempre à defesa corporativa de interesses de grupo em detrimento dos interesses sociais com os efeitos distorcidos que daí advém, se é que (como diz Luís Máximo dos Santos, em artigo ainda inédito) "não estaremos antes perante uma situação, bem mais difícil, em que as próprias características do actual sistema .... comprometem a possibilidade de uma regulação viável e eficaz".
Conclusões estas aplicáveis sem excepção a profissões com peso social relevante, sejam elas puramente liberais com as suas Ordens que têm que ser democratizadas, sejam elas de agentes e profissionais da comunicação social onde o controlo é ineficaz ou inexistente.
O segundo princípio refere-se à necessidade de redução dos segredos bancário e fiscal.
Enquanto os sigilos profissionais se destinam a defender direitos de cidadania, os sigilos bancário e fiscal defendem normalmente privilégios de grupo; não haverá, por isso, investigação criminal fiável e consequente dos crimes de colarinho branco sem o acesso da administração legitimada à vida bancária dos cidadãos.
Costa Andrade, penalista e catedrático de Coimbra, dá-nos exemplos impressivos na sua intervenção, em 1999, no Conselho Económico e Social: na Alemanha, diz ele, a carga fiscal diminuiria em cerca de 1/3 se todos os contribuintes honrassem as suas obrigações fiscais e nos EUA, acredita-se que essa descida atingiria os 40%.
Extrapolem-se para Portugal estas conclusões e perceba-se o drama vivido pelo comum do cidadão português.
Uma percentagem significativa dos juízes europeus subscreveu em 1995 (e eu fi-lo, à data, em nome dos juízes portugueses, como presidente da Associação Sindical) o conhecido Appel de Geneve pedindo à União Europeia, entre o mais, uma alteração das regras de "sigilo" como meio de viabilizar a investigação da grande criminalidade financeiro-económica transnacional.
Penso que, até hoje, os resultados ficaram aquém dos desejos; mas talvez a crise aproxime os desejos das medidas que a necessidade justifica.
O terceiro princípio refere-se ao inquérito criminal.
Impõe-se cada vez mais que o controlo do arquivamento do inquérito seja da competência do juiz de instrução e não do MºPº, alargando-se a todos os inquéritos aquilo que a Lei Catroga consagra - e bem - para as infracções tributárias na esteira, aliás, do que coerentemente se faz em Itália.
Conferir a uma estrutura personalizadamente hierarquizada, como é o MºPº, o direito de arquivar aquilo que, ela própria, investiga sob a câmara escura de um segredo de justiça e com exclusão do direito de recorrer (porque o recurso só é possível dos despachos do juiz) é, verdadeiramente, conferir um poder quase incontrolável de auto-regulação que, segundo o estudo de Harvard, tão maus resultados acarretou.
E dentro desta Casa, no S.T.J., qual foi a agenda do ano?
Notam-se já alguns efeitos das novas reformas processuais sobre recursos, com visibilidade no âmbito do processo penal, certo como é que, no cível, os efeitos só se reflectirão dentro de 2/3 anos.
A uma pequena descida global no conjunto dos recursos entrados neste Supremo Tribunal, correspondeu a clássica e habitual celeridade no seu julgamento.
Tivemos, assim, em 2008, 3936 processos distribuídos nesta Casa (2478 no cível, 1062 no crime, 359 no laboral e 37 no contencioso administrativo) tendo-se julgado globalmente 4128 processos (2554 no cível, 1192 no crime, 344 no laboral, 38 no contencioso administrativo) e mantendo-se em cerca de três meses o tempo médio de julgamento.
Urgente, sim, para o aprofundamento da qualidade da Justiça no país e, por extensão, nos Supremos Tribunais, mostra-se a adopção de medidas corajosas de ruptura, nomeadamente duas.
Em primeiro lugar, a limitação da capacidade de advogar em tribunais superiores: se os juízes só ascendem aí mediante concurso de mérito não é admissível que, neles, se advogue (no cível e no laboral) em regime franco, sem qualquer limite, como se a qualidade fosse apanágio tão só dos juízes.
No fundo trata-se de aceitar um modelo que países tão dispares como a França, Alemanha, Bélgica, Suíça, Egipto, Síria já aceitaram.
Em segundo lugar, há que ultrapassar pruridos inibidores e avançar politicamente para a institucionalização da figura do defensor público como garantia de defesa dos direitos dos mais desfavorecidos.
A igualdade formal das partes - princípio estruturante de qualquer processo - só existe quando a qualidade da defesa se compara à da acusação; coisa que o apoio judiciário, tal como existe, está a anos - luz de garantir e que o defensor público permitirá efectivar muito mais eficazmente.
Senhor Presidente da RepúblicaExcelência
Os tribunais existem nuclearmente para a defesa dos direitos genéticos do Homem; daí que a morosidade não deva ser a única escala de medição da qualidade do Poder Judicial que passa também, e antes de mais, pela redução - ao mínimo possível - da existência de erros judiciários e por um sistema de verdadeira independência na função de julgar.
De erros judiciários não há memória dolorosa e recente no nosso país, a tal ponto que continua ausente no nosso álbum de recordações uma tragédia similar à de James Lee Woodard.
Da independência do juiz a decidir, fala por si uma história comum de pressão mediática sobre o drama de uma menor que não conseguiu beliscar a capacidade de ser independente.
Talvez por tudo isto o Poder Judicial português pode ser confrontado, sem receio, com os dos restantes países do Velho Continente.
É certo, como diz o nosso povo, que uma andorinha não faz a primavera; mas não é menos certo que não há primavera, sem aparecer a primeira andorinha.

Luís António Noronha Nascimento

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Sem comentários: