terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O JUÍZO MISTO DO TRABALHO E DE FAMÍLIA E MENORES DE SINES - UMA MÁ SOLUÇÃO PARA A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA QUE SE AVIZINHA


Com a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, foi aprovado o novo regime da organização e funcionamento dos tribunais judiciais.
Esta lei é aplicável, a título experimental e até 31 de Agosto de 2010, a três comarcas (Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa Noroeste), que funcionam em regime de comarcas piloto, sendo a sua instalação e funcionamento definidos por decreto-lei (artigo 171.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 52/2008).
O objecto desta reflexão incidirá apenas sobre a comarca do Alentejo Litoral e, em particular, sobre a instalação de um Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores.
Com efeito, a Comarca do Alentejo Litoral abrange os municípios de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém, Sines e Odemira (Mapa I anexo à Lei n.º 52/2008).
No âmbito da organização das comarcas piloto, é criado um juízo misto do trabalho e de família e menores, com sede em Sines (artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro) para o qual transitam os processos que, nestas áreas, se encontrem pendentes nos tribunais de comarca de Santiago do Cacém, Alcácer do Sal, Grândola e Odemira, à data da instalação do mesmo (artigo 10.º, n.º 1 do citado Decreto-Lei n.º 25/2009).
O Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines terá um juiz e abrangerá a área territorial dos municípios de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém, Sines e Odemira (Mapa I anexo ao Decreto-Lei n.º 52/2008).
Assim, a partir da entrada em vigor do regime experimental (que se prevê ocorrer em 14 de Abril de 2009, transitarão para o Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines todos processos cuja competência se encontra atribuída a estas jurisdições e que se encontrem pendentes nos tribunais que compõem o actual Círculo Judicial de Santiago do Cacém.
Para estabelecer quais os processos que deverão transitar, importa ter em conta que a competência material do futuro Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores abrangerá todas as acções e processos previstos nos artigos 114.º a 116.º e 118.º e 119.º da Lei n.º 52/2008
[1].
Na parte relativa à jurisdição de família e menores, são introduzidas como novas competências a preparação e julgamento dos processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum, outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família e as acções de investigação e impugnação da maternidade e da paternidade (artigos 114.º, alíneas b), e h), e 115.º, n.º 1, alínea l), da Lei n.º 52/2008), enquanto que, na parte relativa à jurisdição do trabalho, apenas se procedeu à adequação das competências em matéria contraordenacional, face à supressão das questões que eram julgadas em processo de transgressão (artigo 119.º da Lei n.º 52/2008).

Assim, com referência a este momento, transitariam para o novo Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines os seguintes processos
[2]: -
- da comarca de Alcácer do Sal, 85 processos da jurisdição de trabalho e 136 da jurisdição de família e menores, num total de 221 processos;
- da comarca de Grândola, 61 processos da jurisdição de trabalho e 147 da jurisdição de família e menores, num total de 235 processos;
- da comarca de Odemira, 130 processos da jurisdição de trabalho e 189 da jurisdição de família e menores, num total de 319 processos;
- da comarca de Santiago do Cacém, 164 processos da jurisdição de trabalho e 435 da jurisdição de família e menores, num total de 599 processos.
O número total de processos a transferir (de acordo com os elementos estatísticos) será de 934 processos da jurisdição de família e menores e 440 da jurisdição de trabalho, perfazendo 1374 processos.
Facilmente se compreende que estes elementos estatísticos pecam por defeito por duas razões: - a primeira é a de que não foram considerados os novos processos da competência da jurisdição da família e menores e do trabalho e a segunda é a de que um simples pedido de consulta verbal junto do Tribunal de Comarca de Santiago do Cacém permitiu concluir que a diferença entre a estatística real (da secretaria) e a estatística oficial em termos quantitativos dava conta de mais 43 processos da jurisdição do trabalho e da jurisdição de família e menores (apenas provindos dos dois juízos da comarca de Santiago do Cacém).
Em suma e aquando da respectiva instalação, podemos afirmar que transitarão mais de mil e quinhentos processos para o novo Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines.
Na devida oportunidade, e por ocasião da discussão pública da composição das comarcas piloto ou experimentais, tivemos oportunidade de dar conhecimento à actual Direcção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses que esta opção de criação e instalação de um Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores, abrangendo toda a Comarca do Alentejo Litoral, era um perfeito disparate uma vez que se tratava de duas jurisdições de competência especializada cujas características exigiam um determinado grau de especialização crescente que seria manifestamente incompatível com duas áreas tão distintas de actuação.
Nessa altura, foi-nos afirmado que o Ministério da Justiça teria argumentado que o número de processos existentes naquela comarca e que transitariam para o novo Juízo Misto não justificava a criação de dois juízos de competência especializada em cada uma destas áreas, ou seja, um da jurisdição do trabalho e outro da jurisdição de família e menores.
Puro engano !...
Como julgamos ter demonstrado à saciedade, o número total de processos justifica bem que esta opção de criação de um juízo misto irá traduzir-se, a breve trecho, numa sobrecarga de trabalho processual inaceitável e num previsível bloqueio da sua capacidade de resposta.
Não auguramos uma vida fácil para o futuro juiz deste Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines que, para além das normais complicações de trabalhar com jurisdições tão díspares, tem ainda que lidar com novos regimes jurídicos em qualquer destas jurisdições e com um número excessivo de processos em curso (para não falar das futuras entradas).
Com algum grau de certeza, em poucos meses, será necessária a criação de um segundo juízo ou de um lugar de auxiliar que, na prática, irá contra a filosofia de uma organização judiciária que visa obter “ganhos de escala” conciliando-os com o aumento da especialização dos juízes, fins que consideramos correctos mas cujos meios não parecem conduzir àqueles objectivos.
Ainda por cima, não se compreende como se aceitaram como bons os argumentos quantitativos invocados quando até mesmo estes situavam a futura pendência deste juízo misto muito acima dos parâmetros de contingentação que a própria Associação Sindical dos Juízes Portugueses havia propugnado num estudo divulgado alguns meses após o início deste mandato
[3].
Outros argumentos podem ser avançados para a errada opção na localização do futuro Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores a que não podemos ser alheios por traduzirem sinal evidente do afastamento da justiça em relação ao povo em cujo nome se exerce a função de julgar.
É consabido que as jurisdições do trabalho e de família e menores apresentam uma característica em comum, ou seja, normalmente, os sujeitos implicados nos conflitos laborais ou familiares são pessoas de baixos recursos económicos, para quem a superação das distâncias geográficas constitui um factor inibidor no acesso à justiça ou a outro tipo de direitos constitucionalmente garantidos (o direito à saúde ou à educação, por exemplo).
O Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores de Sines abrangerá uma área geográfica total de 5.257 quilómetros quadrados para uma população de 96.787 habitantes, assim distribuídos
[4]: -
- o município de Alcácer do Sal tem 13.354 habitantes distribuídos por 1.465 quilómetros quadrados;
- o município de Grândola tem 14.214 habitantes distribuídos por 808 quilómetros quadrados;
- o município de Santiago do Cacém tem 29.919 habitantes distribuídos por 1.060 quilómetros quadrados;
- o município de Sines tem 13.674 habitantes distribuídos por 203 quilómetros quadrados; e
- o município de Odemira tem 25.626 habitantes distribuídos por 1.721 quilómetros quadrados.
Basta uma simples consulta do mapa de Portugal, ou melhor ainda, realizar alguns dos percursos que iremos exemplificar para concluir que alguns cidadãos que residam em determinadas zonas da futura comarca do Alentejo Litoral terão que percorrer muitos quilómetros para uma simples deslocação ao local onde ficará sediado o futuro Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores.
Exemplifiquemos com alguns exemplos de localidades situadas nos municípios que constituem o limite norte da comarca (Alcácer do Sal) ou que constituem o limite sul (Odemira)
[5].
Os habitantes da localidade de Casebres (município de Alcácer do Sal) necessitam de percorrer cerca de 91.2 quilómetros para se deslocarem a Sines, enquanto que os habitantes de Santa Susana (do mesmo concelho) percorrem 83.8 quilómetros; contudo, os habitantes da freguesia do Torrão (no mesmo concelho e que é a segunda maior freguesia do país) precisam de percorrer 87.6 quilómetros para chegar a Sines.
No extremo sul, os habitantes de Pereiras-Gare (do município de Odemira) percorrem 95.6 quilómetros, enquanto que os habitantes de Sabóia (do mesmo município) percorrem um pouco menos (cerca de 85.7 quilómetros) e os habitantes de São Teotónio apenas precisam de percorrer 65.5 quilómetros.
Estas distâncias nem teriam grande dificuldade de percurso face a outras realidades mas uma simples consulta das redes de transporte que servem todos estes concelhos permitirão concluir que o sistema público de transportes se encontra todo direccionado para as sedes de concelho e, nalguns casos, para a localidade de Santiago do Cacém (por via da implantação do Hospital do Alentejo Litoral) ou para a cidade de Beja (capital de distrito da região do Baixo Alentejo em cuja circunscrição administrativa se situa o concelho de Odemira).
Também estas questões foram equacionadas na devida altura sem que tivessem merecido qualquer resposta, face às reservas que colocámos em relação a uma solução política e legislativa que preconizava o afastamento dos tribunais dos cidadãos que necessitam de recorrer ao poder judicial.
Não seria preferível solução diversa que se adequasse à realidade específica desta comarca cuja área geográfica, na prática, corresponde ao actual Círculo Judicial de Santiago do Cacém ?
Pelos vistos, não foi esta a solução defendida e revela-se ensurdecedor o silêncio de muitos relativamente a todas estas questões, em particular daqueles que preconizavam uma intervenção associativa mais orientada para os problemas dos cidadãos.
Porém, aqui e a exemplo de outras coisas, foi mais forte a atitude colaborante com uma solução que se afigura desadequada e injusta para os quase cem mil habitantes da futura comarca do Alentejo Litoral que mereceriam não ser ludibriados com uma aparência de justiça especializada ou com uma inexistência de proximidade da justiça em relação ao povo.
Também justifica a nossa preocupação que as questões que suscitámos a propósito desta solução que consideramos errada e injusta não tenham sido, sequer, objecto de qualquer ponderação por aqueles que representam os interesses profissionais dos juízes.


António José Fialho
Juiz de Direito
Tribunal de Família e Menores do Barreiro

[1] Outra questão interessante que suscita esta solução de uma dupla competência especializada consiste em saber quais serão as áreas de especialização exigidas para os juízes uma vez que não existem mestrados ou doutoramentos simultâneos em Direito do Trabalho ou Direito da Família e das Crianças (artigos 44.º e 45.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redacção conferida pela Lei n.º 52/2008).
[2] Dados fornecidos pelos respectivos tribunais e de acordo com os mapas da estatística processual.
[3] Consultar o link (http://www.asjp.eu/images/stories/doc/estudo_de_contingentao.doc).
[4] Dados que podem ser consultados na página informática da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (www.anmp.pt).
[5] Os percursos foram todos calculados a partir do Google Maps e tendo por base o centro de Sines uma vez que não conhecemos o local da futura instalação do Juízo Misto do Trabalho e de Família e Menores.

2 comentários:

MIP disse...

Caro colega, permita-me parabenizá-lo pela excelente apreciação que faz do caso de Sines. Estaria decerto menos preocupada se fosse caso único. Sucede, porém, que pelo país fora vão colocar-se questões muito semelhantes. Tendo passado por muitos Tribunais, do Minho às ilhas, passando pelas Beiras e Alentejo, conheço bem as dificuldades de transporte pelas quais as populações vão passar. Támbém já tinha feito uma reflexão a este nível e verifiquei que os transportes publicos estão, como diz, todos direccionados para as sedes de concelho. A isto acresce o facto de os horários não coincidirem por forma a permitir chegar no mesmo dia ao Tribunal. Assim, podemos ter situações caricatas, como a de um cidadão ter que ir até à sede de concelho num dia, aí ter de permoitar, e seguir no dia seguinte para a localidade onde se situa o Tribunal. Bizarro! Como bizarro é ter as duas jurisidições, família e menores e trabalho, juntas. E pelo que sei, vai ser regra e não excepção. Tendo já trabalhado em ambas as jurisdiçoes, sei por experiência própria que se criou um "monstro". O tipo de envolvimento emocional que é exigido da parte do Juiz na tramitação do processos de natureza laboral e familiar é muito diferente, para mais intensa, do que em outro tipo de processos. Por outro lado, criou-se, erradamente a meu ver, a ideia que estamos perente matérias juridicamente mais simples, logo, que exigiriam menos estudo e empenho na parte técnico-jurídica. Por fim, e como disse, vamos estar a abrir a porta para a criação de lugares de auxiliar, mas sem qualquer experiência! E assim se esbate a boa intenção dos juizes especializados (e não só dos Tribunais especializados. Peço-lhe desculpa pelo tempo e espaço ocupados. Com os meus cumprimentos. Isabel Patrício

Dr. António José Fialho disse...

Obrigado pelo seu comentário que até vai contra algumas teses que afirmam que esta é uma solução experimental que não será repetida noutros locais e que julgo estarem erradas.

Não tem que pedir desculpa pelo espaço e tempo ocupados pois o seu comentário foi extremamente oportuno.