quarta-feira, 20 de maio de 2009

"DOMUS IUSTITIAE"

Corria o ano de 1934 e na Vila de Cuba, no Alentejo, publicava-se regularmente o Jornal de Cuba onde escrevia de vez em quando um causídico daquela terra alentejana, o Dr. Calazans Duarte.
Em Maio desse ano, este Ilustre advogado fez publicar um artigo com o título JUSTIÇA em letras que se destacavam, como se fosse um grito e, ao mesmo tempo, um desejo.
Descobri esse artigo muitos anos mais tarde através da ajuda de um amigo e também pessoa interessada por estas coisas dos tribunais pelo que transcrevo aqui esse texto que recuperei desses tempos passados como juiz naquela comarca.

JUSTIÇA

As relações sociais entre os homens impunham a necessidade de criação de normas de carácter obrigatório para orientar e dirigir essas relações.
Para que a obrigatoriedade das normas estabelecidas, e que tinham a sua origem em princípios de moral, fosse eficaz, era necessária a criação de institutos onde se julgassem e punissem os infractores, os indivíduos que, desprezando tais princípios, agiam a seu belo prazer.
As características de tais institutos variavam com os tempos e atingiram o máximo da sua opulência e brilho no império romano, onde sempre houve a preocupação do aparato, no que aliás havia uma certa razão porque os actos espalhafatosos impõem-se mais facilmente.
Daí derivaram os nossos Tribunais que ainda mantêm, decerto muito propositadamente, vestígios desse princípio a que achamos uma certa razão de ser.
É evidentemente por esta razão que ainda se vêem nos tribunais de todo o mundo nos juízes e demais funcionários judiciais indumentárias características, estrados a demarcar a supremacia dos funcionários que os ocupam.
Por vezes não será de boa lógica admitir como útil aquilo que se mantém através dos séculos porque à inteligência repugna mas, desde que ao raciocínio não se manifeste como tola tal perseverança de costumes, havemos de concluir que se eles persistem uma razão de interesse social impõe tal persistência.
Nesta ordem de ideias tem-se entendido que o aparato da máquina da justiça, chamemos-lhe assim, é absolutamente necessária.
Nesta Comarca de Cuba temos de concordar que tal princípio está absolutamente posto de parte. O Tribunal é de todos os pardieiros desta vila o mais vergonhoso. Quanto ao aspecto exterior, sendo lisonjeiros, podemos assemelhá-lo às ruínas de um incêndio. Quanto ao interior bastará frizar que um casinhoto - que tem o nome pomposo de secretaria judicial - 14 ou 16 metros quadrados, têm normalmente de trabalhar dentro dele sete ou oito pessoas.
A sala de audiências - que remédio temos senão chamar-lhe assim para a classificar - essa então parece um museu de inválidos pois há-os ali de toda a natureza: bancos sem pés, cadeiras umas sem braços, outras sem costas, enfim, aleijados de toda a espécie.
Por prestígio da Justiça impõe-se uma reparação do tribunal, para esta comarca tão necessária como a água dos poços.
Será desta vez que nós veremos transformar aquelas ruínas em verdadeiro Templo da Justiça ?
Aguardamo-lo com certa desconfiança.

Maio de 1934
Calazans Duarte (Advogado)


Vem este texto muito a propósito das opções que se vão fazendo a propósito da construção dos novos tribunais que, salvo o devido respeito, parecem tudo menos os Templos da Justiça de que falava há muitos anos o Dr. Calazans Duarte, assemelhando-se mais a complexos habitacionais ou de escritórios onde as funcionalidades e características próprias de um Tribunal são seriamente postergadas.
Será que um cidadão irá recordar no futuro que o julgamento do seu processo se fez num Tribunal paredes meias com os escritórios de um banco, de uma seguradora ou de um supermercado ?
Será que um jovem cidadão vai apreender o espaço judiciário onde foi julgado ou onde se decidiu o seu futuro se este não diferir muito do prédio de escritórios onde vai a uma consulta médica ou a uma sessão de psicologia ?
Será que, misturado com escritórios e “open-office” assépticos e modernos, os cidadãos irão reconhecer o espaço de um Tribunal como espaço de administração da justiça em seu nome e onde se exerce esse poder do Estado ?
Será que num espaço de “open-office” ou numa divisão mais ampla de um conjunto de escritórios, quem responda pelos actos que cometeu contra outros cidadãos ou contra a comunidade, sentirá a autoridade do Estado na sua função de julgar ?
Manifestamente, afirmo que a resposta tem que ser negativa.
Basta ir a qualquer país da Europa para ver que os Tribunais são espaços que se reconhecem como Templos da Justiça.
Mas, mais caricato ainda, basta também ir a qualquer país da América Latina (aqueles que costumamos chamar como 3.º Mundo) para ter a mesma noção de que os Tribunais estão instalados em edifícios onde se evidencia o poder do Estado.
Por cá, ou estamos perante um pardieiro
[1] vergonhoso (e alguns são conhecidos) ou perante um edifício que pouco ou nada pode oferecer para servir de Tribunal.
A título de exemplo, na cidade de Lisboa, optou-se pelo arrendamento de um conjunto de edifícios onde se encontra instalada aquilo que pomposamente chamam de Campus da Justiça (como se a administração da justiça fosse um espaço de treino para qualquer outra coisa), tendo por contrapartida quantias que nos assustam mas, por outro lado e todos os dias, a comunicação social vai dando notícia de que a Administração Central ou Local se preparam para alienar edifícios carregados de História ou de simbolismo para a cidade que poderiam ser facilmente remodelados para ser usados como Tribunais e onde a imagem e simbologia do espaço poderiam conferir-lhes o estatuto de verdadeiros Templos da Justiça.
Como perguntava há setenta anos atrás o Ilustre Advogado Dr. Calazans Duarte, será que é desta que veremos transformar as ruínas, pardieiros e os arremedos de tribunais em verdadeiros Templos da Justiça ?
Pessoalmente, também aguardo com certa desconfiança.

António José Fialho
Juiz de Direito

[1] Pelo sinónimo infeliz, peço encarecidamente desculpa a todas as bonitas localidades deste país que tomam o nome de Pardieiros e que se distinguem claramente dos edifícios “pardieiros” que aqui refiro.

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